Coimbra, 1987. Tudo se resume sempre ao início, à génese das coisas. A um senhor a quem chamávamos “senhor”, de seu verdadeiro nome Dinis, que teve a visão de criar um videoclube e realizar as mais selvagens fantasias de adolescente dos anos 80: poder aceder livremente a pornografia e ver filmes sem sair de casa. Nesse templo de peregrinação semanal conhecemos Max, o louco, numa trilogia de luxo da qual idolatrávamos o segundo tomo como se de uma referência religiosa se tratasse. Lord Humongous era o nosso Satanás e o Road Warrior o Jesus redentor. Os santos e os mártires pereciam à fúria dos demónios das areias nas suas infernais bestas motorizadas. O discurso “There has been too much violence. Too much pain. (…) Just walk away.” rodava 3 ou 4 vezes ao fim de semana numa cópia que fazíamos de vídeo para vídeo, juntando esforços com um vizinho com o intuito de partilhar esta joia. Uma operação tão complexa como activar ogivas nuclear, com os dois responsáveis pelo equipamento a rodar a chave em simultâneo. As nossas bicicletas tinham espigões laterais e nos nossos corpos ostentavam-se as mazelas de acrobacias falhadas. A nossa religião era Max, o louco, e os clones italianos de baixo orçamento eram a nossa perdição. Todos consumidos, todos copiados, todos partilhados. Como representantes da religião de Max, a decepar, mutilar, incinerar e decapitar por esses wastelands fora. “Just walk away” é a voz que ainda oiço a meio da noite, ensopado em suores dos mais nefastos pesadelos. Como senti a falta do cinema do Max de Miller neste anos que passaram. A nossa relação não acabou bem, o último com a Tina Turner foi um embuste, uma colagem de interesses que não resultou como pretendido. Não é um filme desprezível. Também não chega aos calcanhares do Road Warrior.
Fast forward para décadas mais tarde. A vida não é a farra infindável que havíamos visionado na juventude. Por sorte ainda não chegou o apocalipse e as nossas cidades ainda não são uma desolada paisagem de areias de perder de vista. Os lords Humougous das nossas vidas têm outras formas menos agressivas mas igualmente nefastas para o saudável desenvolvimento dos nossos quotidianos. O homem a quem chamávamos Max, o guerreiro da estrada, irá voltar. “Oh céus, como gerir este misto de excitação e receio. É verdade que tudo o que é remake, reboot, remerda dos anos 80 tem sido um fracasso, mas por deus, é o George Miller a desenvolver o projecto. A mesma pessoa que nos mostrou a perfeição há 30 anos atrás. Boa! Mas, espera aí, espera… aí… O mesmo que fez Babe o porco falante e os pinguins dançantes? Que incontrolável carrossel de emoções. Vou optar por me abster.” E chegou um teaser, e um trailer, e outro trailer, e a notícia que era R Rated nos States, e o making of a comprovar o rigor e a seriedade da produção, e… impossível aguentar. Primeiras críticas: absoluto consenso em torno da genialidade. Poderá isto ser verdade? Um blockbuster da Warner? Ninguém tem nada a apontar de negativo? Que feitiçaria é esta?
Noite da estreia. A desolação que encontrei foi um choque. Na minha mente envelhecida imaginei filas a rodear todos os corredores do shopping a lutar barbaramente por um bilhete, pela honra de entrar no cinema. Cosplayers de Max e guerreiros do pós-apocalipse, a ocasional Tina Turner, Master Blaster, um potencial Wez ou Lord Humoungous. Pessoas com calças de napa muito apertadas com as nádegas de fora? O que encontrei parecia um deserto pós-apocalíptico australiano. Nada. Ninguém na fila. 90% da sala vazia. Que mundo este em que vivemos? Ainda há umas semanas estava isto cheio para ver uma anorética a perguntar o que era um buttplug e a sentir-se ofendida pelo protagonista o querer enfiar-lho no cu! Raios vos partam, pessoas que frequentam cinemas!
Luzes desligadas. Silêncio. Fade in. “My name is Max. My world is reduced to a single instinct: Survive. As the world fell it was hard to know who was more crazy. Me… Or everyone else.” Max e o seu Interceptor. “Oh meu Deus, Oh meu Deus“, grito de entusiasmo como uma menina de 12 anos. E começa um imparável espectáculo cinematográfico que haveria de durar duas das mais belas horas que já passei numa sala de cinema desde que não tenho que pedir dinheiro aos meus pais para comprar o bilhete.
Por opção de Miller o futuro pós apocalíptico é colorido para contrastar com a visão descolorada do género. Aquele que seria uma espécie de Mad Max 1, 5, ali entalado entre a morte da família de Max e as tropelias do Road Warrior é afinal um remake. Sem o sempre aborrecido e oblongo “origins“. Max entra em cena e faz o seu trabalho, que é facilitar a resolução de um problema que originalmente começa por ser conveniente para a sua existência e para o fim já o faz por apego emocional à causa. Max não pede nada em troca, nem os favores sexuais que transmutada Charlize insinua. Não me choca Tom Hardy a ser Max, o louco. Julguei abominar o conceito de um Max não-Gibson e encontro-me positivamente encantado com a escolha.
O esquema é simples e a narrativa linear. Luta pela sobrevivência numa perseguição frenética que dura a totalidade do filme. No decorrer das várias fases desta operação vamos conhecendo esta nova versão do pós-apocalipse de Miller. Um futuro selvagem, estratificado, miserável, musculado e orientado à pura sobrevivência. Visceral. As emoções são encaminhadas para a auto-preservação e a única maneira de unir um povo é pelo esquema religioso / místico de Immortan Joe. Fazer o povo acreditar que existe um bem maior, que fazem parte do grande esquema das coisas. Uma belo espelho da realidade. O vilão e os seus capangas são o reflexo da sua maquinaria, levando ao limite todo o seu incontrolado poder destrutivo. Mártires a caminho de Valhalla. “Shiny and Chrome”. Mais uma vez um casting glorioso com toda uma galeria de actores e extras a embelezar a bizarria da tradição Mad Max e da visão do seu realizador. Personagens extravagantes, clãs multicolor, trajes obscenos, toda uma gama de urros selvagens guturais e primitivos numa banda sonora de caos, sangue e metal retorcido. A música é competente a elevar a destruição em crescendos apoteóticos. O guitarrista e o camião dos tambores apenas já seriam suficientes para me fazer comprar o blihete para o filme.
Poder-se-á pensar que um filme em constante velocidade máxima não tem espaço para se expandir no detalhe e na narrativa, mas Miller sabe fazê-lo como ninguém , afinal foi ele o inventor deste conceito e aproveitou para o optimizar. Foram 30 anos a refinar um filme, a rejeitar ideias más, mandar folhas amarrotadas para o lixo, polir conceitos, dar vida a personagens, a desenhar veículos e criaturas horrendas. Tempo houve para delinear a estratégia. E o detalhe do mundo de Max é rico em texturas e sons. Imagens de relance servem para explicar conceitos que verbalmente poderiam demorar uma eternidade. A sociedade em que se vive é disso exemplo. Ou as regiões pantanosas, os lagos de sal. Todo o visual do filme fala por si, explica-se a si próprio como se tivesse voz. A sujidade, a poeira, as areias, o sangue e o óleo. Ao contrário da limpeza reluzente do habitual blockbuster de verão.
Charlize Theron é a co-piloto desta aventura e muito se tem escrito sobre as tendências feministas e da agenda escondida deste tipo de argumento. Não concordo porque quem conhece o cinema de acção sabe que uma mulher forte a liderar e a esfolar com veemência não é nenhuma novidade. Tarantino e Rodriguez usam-nas bastante, só para dar um exemplo mais imediato. A linha narrativa do papel da mulher no passado, presente e futuro deste pós-apocalipse é a chave da genialidade deste aparente liso argumento, que de modo sinuoso mostra a importância da importância de uma ajuda feminina neste caos de “boys and their toys” futurista. São elas a chave do futuro. O amor não chegou a florir, eliminando assim o risco de transformar uma ópera pós-moderna de destruição e caos numa telenovela das 9.
Só não atinge a perfeição absoluta pela cedência que foi feita na nudez e na violência gráfica. Em pelo menos 4 cenas notei que os cortes foram demasiado drásticos para não mostrar a verdadeira dimensão da violência. Miller substitui o grafismo por olhares, sons, palavras, expressões ou simples silêncio que não as tornam mais fáceis, só que não são enquadradas na composição. Eu queria ver isso. Queria ver sangue, tripas, pedaços de cérebro a atingir as objectivas. Teria ficado todo contente com um pouco de nudez ou a ocasional berlaitada primitiva, na tradição do Road Warrior.
Que este exemplo se propague e Hollywood comece a fazer mais filmes virados para a nossa expectativa enquanto cinéfilos e menos para as suas expectativas contabilísticas que penso ser compatíveis com um pouco de visão e arrojo.
My life fades. The vision dims. All that remains are memories. I remember a time of chaos… ruined dreams… this wasted land. But most of all, I remember The Road Warrior. The man we called “Max.”